terça-feira, outubro 31, 2006

É arte, filha! É arte...

Buenos Aires não tem o encanto natural do Rio, nem tão pouco a imponência quase majestática de Paris, mas é uma daquelas cidades em que certamente não me importaria de viver. E dizer isto é dizer muito, acreditem.

A Argentina e Buenos Aires em particular, goza de uma centralidade invejável no contexto da América Latina, com um sem número de pontos de interesse nas proximidade (ainda que quase sempre medido na unidade do milhar de Kms, mas é tudo uma questão de escala)

Buenos Aires podia ser à primeira olhadela, um verdadeira cidade europeia, com um trânsito infernal, um centro financeiro pujante, recheado dos respectivos adereços humanos afeiçoados ao dress code globalizado, a que não faltam a maioria dos tiques de uma qualquer capital europeia.

E esta percepção é tanto mais estranha, quanto levamos na bagagem a expectativa de uma Buenos Aires com um certo perfume, muito salero e uma áurea...de tango. Em resumo, uma expectativa de singularidade pela positiva ou se quisermos, uma cidade muito particular devido a determinados elementos culturais.

Importa dizer que a ciudad porteña não encerra, que eu me tenha apercebido, um monumento que possa ser tido como um verdadeiro ex-libris na qual se apoia o apelo turístico. A não ser o tango, claro, mas a esse lá irei no post seguinte. E este facto - a ausência de um farol em que gira a cidade e o turismo - permitiu, certamente, obter uma cidade mais homogénea, com necssidade de aproveitar o que de bom tinha, para assim criar uma malha desconcentrada de locais de interesse para os nativos e para todos quantos a visitam. E neste ponto, a capital federal é uma agradável surpresa, fazendo da diversidade uma alavanca importante para a sua dinâmica corrente sanguínea.

É me difícil saber por onde começar, porque fiquei sensibilizado pelo conjunto, mas com nada em particular (pelo menos desmesuradamente). Estarei a ser algo exigente nesta conclusão, até porque se houve algo que me deixou espantado foi a proximidade da cultura com a população. Bom, não digo que a população seja, em geral, de uma grande bagagem cultural, mas a verdade é que o Estado proporciona as condições mais que básicas para que qualquer um a obtenha (pelo menos na capital).

Domingo, dia 15:

Tomo o duche da ordem e composta na medida do impossível, a população capilar, saio da gaiola em direcção a um conjunto de alvos não sistematicamente eleitos. Já pasava da hora de almoço e o sol havia tido a gentileza de me fazer companhia neste périplo federal. O bairro de La Recoleta estava radioso e tudo à minha volta combinava com a Primavera (o que nos dias de hoje já não é fácil). Imagino que logo, logo o sol tenha ficado irritado, porque eu, afinal, depois de lhe agradecer sentidamente a companhia que tanto me honrava, enfiei-me num calimero estrelado em direcção a um shopping. É verdade... deixei-me tentar por essa triste tentação global e agoniante. Era tarde para restaurantes à séria e se há coisas que gosto de comparar, os centros comerciais são uma delas.

Depois de paga a corrida, entro no dito. Com um aspecto exterior visualmente agradável, mas não muito longe do típico, dei por mim a pensar que podia estar em qualquer mega superfície europeia. Os conceitos são efectivamente globais e nada registei de relevo que os permitisse distinguir dos irmãos e primos que por cá alegremente pululam. Feita que estava esta importante observação científica, dirigi-me à zona de restauração (que afinal era o meu propósito mais básico) e escolhi rapidamente de entre a panóplia que se imagina não muito fantástica, um moderno restaurante do género comida no tabuleiro, que não sendo de levantar uma plateia, serviu perfeitamente o propósito de amansar um estômago que clamava por atenção.

Feita a penitência a este tão vital orgão e depois de despejar 600 ml (sim, leram bem) de coca cola diet (não imaginam o quanto disto se bebe por aqui, e é a garrafa mais pequena disponível) saio nervoso e ansioso por reencontrar o meu compagnion de route que havia deixado à porta, o Sol.

E os amigos são assim, perdoam tudo e mais uma vez pedindo desculpa pela minha falta de chá, segui com ele rumo ao museu Malba. A pé, porque além de bastante próximo, é tudo plano o que facilita e bastante o exercício pedonal. Estava e não me canso de frisar um dia de luxo, daqueles que imaginamos nos sonhos e não vemos na realidade. Quer dizer, ver até vemos, mas não os conseguimos sentir e é pena que mais das vezes assim seja.

O Malba é um museu de arquitectura moderna, construído acerca de 4 anos numa zona extremamente desafogada da cidade. Goza, só por isso, de uma involvência agradável a que acresce uma arquitectura convidativa, não demasiado espalhafatosa e tão pouco opulenta. Dir-se-á que é, em ponto bastante reduzido, o nosso CCB, com diversas exposições temporárias ligadas a artistas maioritariamente contemporâneas, como uma forte e natural inclinação para os artistas sul-americanos, de onde, obviamente, se destacam em quantidade os naturais das pampas.

A um preço convidativo - dez pesos - tem-se acesso a todas as salas e exposições existentes. E que valeram sinceramente o custo. Podia assinalar diversos artistas que me agradaram pessoalmente, mas apenas destaco (injustamente) um dos mais conhecidos - Botero.

Vista em breves minutos a livraria do Malba, dirigi-me ao alçado oposto do museu para uma merecida copa de viño na esplanada da cafetaria, porque afinal, o meu amigo continuava aí fora à minha espera e eu queria disfrutar ao máximo a sua companhia.


Retemperado o espírito por mais um Malbec de Mendonza, apontei baterias no meu improvisado e minuscúlo mapa citadino ao Museu Nacional de Belas Artes, que fica na mesma avenida, mas um pouco mais distante. Ainda a pagar pelas diatribes da noite anterior, aconselhou-me o bom senso a pedir boleia a um calimero estrelado, o qual com a diligência a que estava a habituar-me, me deixou prontamente à porta do meu destino.


O Museu Nacional de Belas Artes é um edifício de dimensões generosas, cor de vinho tinto, certamente em homenagem ao Deus Baco que permitiu que tamanha benção vitivinícola floresça por aquele país. Não se trata de um edifício imponente, novo ou especialmente bonito. É apenas o principal museu de pintura do País e nessa medida impõe-se mais pelo seu interior do que pelas linhas exteriores que sobressaem à chegada.

Às portas do Museu encontrava-se uma pequena multidão tão típica de um Domingo de sorriso rasgado pelo Sol. Intrigou-me aquele buliço, mas, para meu espanto, concluí que não estava perante umas mãos cheias de excursionistas arrivistas do outro lado do mundo, mas perante argentinos que haviam eleito, entre o cardápio disponível da oferta de Buenos Aires, uma ida ao Belas Artes. E eu, não posso concordar mais, foi uma excelente ideia.
Decido entrar nas portas simples do museu, algo desconfiado e hesitante relativamente ao ritual de bilheteiras e por aí fora. Enfim, saber onde é. Qual a fila para isto, qual a fila para a outra exposição.
A entrada nada tem de magnânime ou de esplendorosa, apenas uma escadaria que se abre para o primeiro piso, portas de vidro abertas do lado esquerdo e direito, duas ou três vitrines repletas de livros biográficos de diversos artistas e um balcão simplório, onde eu supunha ser a dita bilheteira, onde pontuavam duas funcionárias de idade respeitável, sempre vigiadas pelo olhar atento (mas certamente confuso de um segurança).
Havia algo ali que não batia certo com a ideia do principal museu de Belas Artes do país. O hall de entrada estava repleto de famílias, crianças e jubilados que deambulavam alegremente da sala da esquerda para a direita e vice-versa ou simplesmente se quedavam reinadiamente em charlas públicas que faziam do recinto uma qualquer ante-câmara de um derby River Plate Vs. Boca Juniors. Tentando manter o pé perante aquele súbito festim que decorria num local que tinha na minha estreita mente, como sendo um sítio de recato e até algum pudor e respeito pelos artistas cujas obras ali estariam expostas, verifiquei na prática e alfo receoso que o segurança de serviço me puxasse literalmente pelos colarinhos que o Museu era de entrada livre.
O chão em tacos de madeira apresentava-se gasto e bastante riscado. Sinal não só do longo tempo passado desde a sua colocação, mas também da falta de manutenção, mas, acima de tudo e mais importante do grande uso que lhe era dado, fruto da grande afluência que o museu merecia.
Ainda estranho por aquela minha entrada esquiva e aleatória na sala do lado direito da entrada, fui perseguindo as obras expostas e à cadência natural do meu limitado conhecimento da pintura, fui ficando cada vez mais maravilhado com a riqueza do espólio que ali se encontrava permanentemente exposto. De Manet a Monet, Picassos a Gaugin, Van Gogh a Van den Velde, à riquíssima escola italiana e espanhola, não descartando o mais delicioso e não menos surpreendente Chagall, com a obra "Amantes".
Não estava de facto crédulo no que os meus olhos viam. Há dois minutos atrás estava num apinhado átrio fesitvo, mais condizente com o ambiente descontraído (até demais) de um qualquer tasco típico de bairro, em que os clientes se sentem como em casa e por esse motivo, se comportam em público, como o fazem na privacidade dos seus lares. Para o bem e sobretudo para o mal. E agora, driblado apenas um segurança passivo, estava perante verdadeiras obras de milhões em salas repletas de crianças, carrinhos de bebé e respectiva parafernália, sem que fosse notória qualquer segurança especialmente dotada para fazer face a menos honrosas intenções.
Foi no meio daquela alegre perplexidade que percorri em cerca de duas horas e meia a totalidade das salas do Belas Artes. De artistas europeus a mostras específicas da América Latina, passando ainda pelas civilizações pré andinas, muito há para visitar neste Museu que, como já perceberam, só posso viva e entusiasticamente recomendar.

Concluí desta minha experiência e confirmei depois junto de porteños, que a cultura na Argentina tende a ser gratuita e que há um grande esforço para que a mesma seja tendencialmente gratuita, possibilitando o seu acesso sem a ancestral desculpa da vertente financeira que a sua aquisição implica, não esquecendo as muito debilitadas condições económico-financeiras em que ainda se vão vivendo naquelas terras.

Há nisto tudo um pormenor delicioso, o qual afortunadamente presenciei assim que entrei no Museu propriamente dito. Uma criança dos seus 5 a 6 anos, visivelmente confusa com uma grande escultura de madeira (manifestamente abstracta e de entendimento dúbio) que se apresentava diante dos olhos, pergunta à mãe atarefada em manobrar acrobaticamente o duplo carrinho de bebé que levava entre mãos:
-Ó mãe, o que é isto ???
A mãe, notoriamente atrapalhada com a pertinência da questão, fazendo-a provavelmente recordar o igual embaraço de que foi vítima quando teve de explicar a proveniência dos bebés, respondeu entre o indecisa e o peturbada:
- É arte, filha ! É arte...

É isso mesmo. Delicioso.

1 Comments:

Blogger OhBue said...

O que é este blog ? é arte Daikiribú, é arte !
parabens por tão boa escritura !e tão boa percepÇão e veredito da minha cidade ! :-)

1:10 da tarde  

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