terça-feira, julho 04, 2006

À prova de ressabiados, como eu...

Lourenço Viegas de sua graça, é actualmente o crítico gastronómico que mais respeito. "Conheci-o" pelas críticas quinzenais que dá à estampa no Jornal de Negócios à 6ª feira. Espírito livre e cáustico q.b., dotado de um azedume para dar e exportar, este Viegas é um ribatejano da mais pura cepa (já viram, estou a absorver a "nacionalidade" ribatejana). Do que leio da sua lavra, ressalta sobretudo a ideia de que não embarca em carnavais em que a qualidade da cozinha é relegada para segundo plano em favor de abstracções conceptuais de circunstância, como sejam as modas mais ou menos estéreis que muitas vezes "pegam de estaca" em muitas casas deste largo pasto.
O seu lema reflecte tudo: "Dizer mal para comer melhor". E estou completamente de acordo, o grau de exigência dos clientes é cada vez mais vulnerável a determinadas ondas de costumes e tiques sociais em nada sincronizados com a qualidade do serviço prestado nesses restaurantes. E menos condizentes ainda com os preços normalmente praticados.
Mas este Lourenço não vai em cantigas, e para ele o importante num restaurante há-de ser sempre e sempre a qualidade dos pratos que serve e não o conceito ou o status adveniente de comer por esses botecos. Acredito que seja não raras vezes demasiado assertivo ou pouco complacente com os ambientes que os owners sempre pretendem transmitir aos espaços que criam. Mas há uma coisa que é certa: a comida é o fundamental. E sem palhaços não há circo.
Tem prosas soberbas sobre vários restaurantes, das quais destaco a análise sagaz ao restaurante "A Travessa", com a qual, diga-se, não podia estar mais de acordo. Assino por baixo e em caixa alta.
Agrada-me sobretudo o facto de as suas perspectivas constituirem uma garantia de que não vou ao engano. Se diz que é bom (o que é raro), é porque roça a excelência. Caso contrário, é uma questão de baixar o grau de exigência que sempre imprime nas suas críticas e escolher livremente, tendo em atenção a maior ou menor relevância dos pontos fracos apontados.
É o caso, por exemplo, da sua mais recente crítica ao restaurante La Moneda (que passo a citar abaixo). Longe de ser um deslumbre, é um restaurante que não desmerece. Com um conceito visual bem cuidado e uma cozinha que se apresenta agradável à vista, aponto-lhe os defeitos similares que este mestre da crítica lhe reconheceu. Atraso no serviço e algum amadorismo ou ansiedade com que tentam conjugar uma infinitude de ingredientes (sobretudo doces) num mesmo prato. Acrescento-lhe um outro pecado original: o muito ruído que os comensais provocam numa casa que aparentemente se esperava de décibel mais recatado. Para não falar de um Catarina branco, que por razões várias e diversas, acabou por não dar a melhor maridagem a um jantar, ainda assim, de simpática memória.
Confirmo, por outro lado, o ponto forte: as sobremesas. Quer dizer, pelo menos o strüdel de maçã quente que me tocou em sorte meeira. Deu mesmo direito a juras de regresso só para dar largas a esta minha fraqueza pelo dito. Regresso quase tão lendário como o de D. Sebastião de terras mouriscas.
Última observação para dar nota que tudo isto se passou há muito, muito tempo, ainda o La Moneda era uma criança e a frequência não tão sexualmente diferenciada, como parece ser agora o caso. De qualquer forma, sempre será uma razão acrescida para se caprichar e ir deslumbrantemente acompanhado, por forma a evitar o "mau olhado".
"
La Moneda (Lisboa)
A má moeda. Uma vez tentaram vender-me um sofá por seis mil euros. Mas eu não estava a "comprar um sofá", dizia a arquitecta, estava a "comprar um conceito. Porque hoje um sofá já não é apenas um sofá". Pois não.Também no mundo da comida há muitos restaurantes que já não são apenas restaurantes. São um conceito. Invariavelmente ficam na moda, invariavelmente o serviço é demorado, invariavelmente a comida é uma porcaria, invariavelmente acabam por fechar.No La Moneda, o conceito é o “food and movement” (tipo McDrive ?!). Nas paredes são projectados slides de quadros e cadernos de viagem de artistas, "num ambiente que nos transporta para o imaginário de paraísos desconhecidos" – ou qualquer outra lamechice deste género que se pudesse ler na badana da ementa, ou naqueles textos de revistas e jornais que adoram promover restaurantes-conceito.E não há pior do que a mistura restaurante-galeria-de-arte, que parece, contudo, ir fazendo algum sucesso.Numa sala escura, bastante público sexualmente diferenciado e alguns casais convencionais. Destaco dois colegas de trabalho a fazerem jus ao conceito de food and movement. Primeiro, analisaram uns relatórios "lá da empresa" e ela fazia um ar interessado, rematando sempre o levantar de sobrancelhas inteligente com um "completamente". Ele explicava os números. Tal como tinham dito em casa, estavam num jantar de trabalho. No fim, sem papéis, e com algum vinho, a conversa era pegajosa, o copo circulava nos dedos e ela trincava o lábio enquanto o ouvia. Ele pagou. Adoraram o La Moneda e vão voltar. Mas não se lembram do que comeram. Mas eu lembro: cozinha do mundo, adocicada e a saber sempre a gengibre.Ceviche - que é um prato da América-latina, da costa do Pacífico, de peixe marinado em lima, cebola, coentros e tomate - levemente interessante, e desajustado na sala sombria; lombo de vitela com cogumelos portobello e crosta de legumes, criativamente chamado lombo-bello!, tenro mas sem graça, nem verdadeira crosta; um crepe malaio de corvina, gambas e gengibre e coco, enjoativo; corvina com escamas de cogumelos (a ligação peixe cogumelos corre quase sempre mal, e não foi esta que correu bem).No La Moneda, tenta-se fazer cozinha de fusão (que por esse mundo é tão novidade e tão na moda como o Renault 19 Chamade), mas faz-se cozinha confusão: exagera-se no doce, no número de ingredientes por prato, no querer ser diferente.As sobremesas estão um ponto acima do resto (aliás, li algures que o dono/cozinheiro considera mesmo que no seu restaurante as entradas e as sobremesas são melhores do que os pratos…): destaco a tarte de chocolate e a mousse de papaia com um bom gelado de manjericão e lima.O serviço é coerente: empregados bonitos, simpáticos e ineficientes trazem os pratos na hora certa. Ou melhor, uma hora certinha depois de terem trazido o anterior. E os preços são altos, mesmo se os não compararmos com a qualidade.Felizmente, a lei de Gresham não se aplica na restauração: os maus restaurantes acabam por se expulsar a si próprios. Como a loja do sofá dos mil e duzentos contos, que hoje é uma agência do Banif.Melhor: Sobremesas.Pior: A confusão de sabores.Pontuação: Sem estrela(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)La Moneda, Rua da Moeda, 1 C, Lisboa, Tel: 213 908 012, 10h00 – 02h00, encerra Domingo, aceita cartões, 35€/pessoa. "
in www.contra-prova.blogspot.com por Lourenço Viegas